quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A REVOLTA DOS INTRUSOS


Xenofobia é território de estudo do peruano Danilo Martuccelli, professor de sociologia na Universidade Lille 3, emFrança. Para esse tema dedicou não só teses académicas, mas um livro (Racisme et Xenophobie en Europe, ed. La Découverte). Na entrevista que se segue, o professor analisa o impacto da legislação da UE sobre os países membros, ao mesmo tempo que tenta explicar o endurecimento legal, de um lado, e as perspectivas de milhões que vivem em situação de vulnerabilidade e incerteza, de outro. (Só de brasileiros, são 2,7 milhões os que deixaram o País). Fala dos medos sociais que capturam o imigrante e fazem sua expiação. Ataca o economicismo que cega parlamentos e governos na busca de soluções. E chama atenção para o aumento de mulheres deixando seus países de origem: “Emigrar já não é mais um projecto masculino”.


O endurecimento das leis de imigração na UE, constrangimentos sofridos por brasileiros em aeroportos, a morte violenta de um jovem do Sul do País numa rua de Madrid. Enfim, o “vento frio da xenofobia” está mesmo soprando no continente europeu, como diz o presidente Lula?
O que se viu nos últimos anos e o que se vê neste momento, com essas leis, é que a gestão de imigração no continente europeu obedece a dois critérios. Primeiro: o imigrante ameaça a segurança interna, portanto, é assunto da polícia. Segundo: querem ver a imigração exclusivamente sob a óptica económica, como forma de se garantir ingresso de mão-de-obra, suprindo dificuldades demográficas. Essas duas visões, extremamente redutoras, não incorporam as dimensões social, cultural e humana da imigração. Ao contrário, transformam o imigrante no bode expiatório dos medos sociais.

Que medos são estes?
Vários. Mas o primeiro deles, a meu ver, tem índole demográfica. Em 1900, a Europa reunia aproximadamente 20% da população do planeta. Hoje tem 11%. Em 2050 terá 4%. Parece evidente que nos próximos anos a região terá de passar por algumas ondas migratórias.

Os incentivos à natalidade não estão dando resultado?
Em países onde se harmonizou a vida profissional das mulheres com as demandas do trabalho doméstico e familiar, os incentivos tiveram resposta. São lugares com taxas de natalidade aceitáveis. É o que se observa hoje na França e em países escandinavos. Mas nos países em que se desestimulou o trabalho feminino fora de casa encontram-se taxas de natalidade particularmente baixas. É o que se vê pelo Leste Europeu e em países da Europa latina, como Portugal e Espanha. Na Grécia, também. Nesses lugares, encontra-se a “greve do ventre”, ou seja, as mulheres evitam ter filhos para desenvolver alguma actividade remunerada.

Que outros medos compõem a expiação do imigrante?
Durante muito tempo a Europa se baseou num modelo de desenvolvimento que buscava, ao mesmo tempo, a eficácia de mercado e a regulação do Estado sobre a economia. Esse modelo variou de país para país, mas, essencialmente, dependia de algo chamado “coesão social”. O que se viu nos últimos anos? A coesão europeia foi tremendamente desestabilizada pela globalização no mundo do trabalho. Assistimos a um crescente empobrecimento das classes médias e o surgimento de vulnerabilidades nos sectores populares. Isso dá origem a uma ansiedade que acaba por traduzir-se em intolerância aos de fora. Um outro medo se articula em torno da ideia de nação. Até pela configuração da UE, as nações europeias sentem-se ameaçadas. Mas por quem? Pelo quê? Por um projecto europeu e por nacionalismos que estão pipocando. A desestabilização vem daí: uma nação, seja ela alemã, francesa ou espanhola, tem que dar lugar a uma cidadania europeia, ao mesmo tempo em que lida com regionalismos reactivados. Eis por que o imigrante transformou-se num ponto focal da política europeia.

Hoje milhares de brasileiros estão ao alcance das sanções da nova legislação europeia. Voltando aos anos 80, nossa década perdida, veremos que o fluxo migratório brasileiro deu um salto naquele período e no início dos anos 90. Só que no período subsequente, a economia brasileira ganhou estabilidade e hoje as perspectivas são boas para o País. Por que, então, as pessoas continuam saindo?
Há pelo menos três razões fundamentais para emigrar, sem querer simplificar a reposta. A primeira, e mais evidente, é a dificuldade económica no país de origem. Porém os que saem não são necessariamente os mais pobres, e sim os mais frustrados. A segunda razão é a perseguição política. Sobretudo na África subsaariana, muitos deixam o país de origem tocados por ditaduras. Desgraçadamente, os refugiados ainda constituem um contingente imenso. A terceira razão tem a ver com o fato de que o mundo do trabalho tornou-se altamente competitivo. Profissionais especializados, como arquitectos, designers, gente da área de finanças, defrontam-se com um mercado de oportunidades atractivo e móvel. Com os investimentos sucessivos em educação nos últimos anos e com esse mercado global aberto para especialistas, encontramos a explicação de por que as classes médias latino-americanas emigram. E há, por fim, uma quarta razão: a imigração continua sendo uma aventura pessoal.

O senhor diz que não são os mais pobres que emigram, mas os mais frustrados. Qual é a diferença?
Os mais frustrados é que saem. Aqueles que, diante de uma péssima distribuição de riquezas e da falta de oportunidades, se desencantam. A desigualdade é um aliciante muito forte. Agora, se me permite, quero ressaltar um outro fenómeno: durante muito tempo a emigração foi um projecto essencialmente masculino. Agora, e cada vez mais, são as mulheres que emigram, levando na bagagem um projecto pessoal. Elas já não saem de seus países para encontrar o cônjuge. Partem por conta própria. Há as solteiras, dispostas a uma nova vida. E há as mulheres mães que partem em busca de oportunidades de trabalho, para gerar remessas que mandam ao país de origem, ajudando a criar os filhos. Esse fenómeno merece nossa atenção.

Existe uma ideologia racista no continente europeu?
Se ligo o barómetro, vejo que essa ideologia pressiona apenas uma pequena parcela dos europeus. Gente de extrema direita. Você pode perguntar: existe um racismo popular difundido na Europa? Infelizmente, sim. O racismo popular é uma mescla de coisas. Tem o racismo biológico, do tipo “sou melhor indivíduo que o outro”; o racismo de carácter cultural, difundindo que o diferente é impossível de ser assimilado; e o racismo por competição económica, “não quero que o outro venha porque vai tirar meu lugar”.

E os preconceitos? na imprensa espanhola lê-se que as brasileiras desembarcam em Madrid para viver como prostitutas. Os imigrantes do Leste Europeu são identificados com a máfia. Os africanos, com gente violenta.
Preconceitos sempre existiram. E existirão sempre. São como uma regra universal da história humana, segundo a qual um grupo social se valoriza às custas de rebaixar o outro. Só que, hoje, além de se propagar com incrível rapidez, os preconceitos estão mais fortes. Observe o seguinte: nas periferias de muitas cidades europeias, onde existe uma coabitação real de imigrantes e europeus, estouram conflitos inter-étnicos e de competição económica muitas vezes violentos. Mas os estereótipos são menos fortes, porque existe coabitação. Um vê o outro. Já os estereótipos que se propagam pelos veículos de comunicação de massa, sem contacto com a realidade, tendem a gerar preconceitos mais nocivos e perigosos. Como combatê-los? A única forma é fazer com que as coisas funcionem, é melhorar a situação do emprego, da habitação, saúde, educação, integração cultural. Posso explicar a importância da coabitação com um exemplo meio estranho. Há homens que são misóginos, mas, a despeito de sua misoginia, casam-se com mulheres. Não fosse assim, a espécie humana já teria desaparecido. Mas isso prova que o preconceito não necessariamente evita a relação com o outro.
(excerto da entrevista do sociólogo peruano Danilo Martuccelli)

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